terça-feira, 7 de junho de 2011

COMO AQUECER O CORAÇÃO COM UM CAPITÃO E UMA SEREIA...



Para aquecer o coração não basta a boa sensação de proteção ou ter consciência de algo pleno ou um amor correspondido. Para aquecer o coração é necessário estar aberto a todas as incertezas porque são delas que vem o movimento verdadeiro de olhar para dentro e ver as chamas se formarem. Para aquecer o coração é preciso entregar-se na imaginação e este encontro só é permitido aos aventureiros e libertários.

É justamente com base na aventura de efervescer a imaginação que o Grupo de Teatro Clowns de Shakespeare convida a todos, logo no início, a depreender-se da matéria e entrar no recinto sentindo os ventos, a maresia, as terras distantes e o canto dos mares e dos personagens, ou seja, embarcando na imaginação! É nesse barco que somos convidados a viajar. Assim é O Capitão e a Sereia, texto baseado na obra homônima de André Neves. Um encantamento de detalhes do começo ao fim.

A adaptação tem muitas questões dignas de aplausos. Usa de inúmeros recursos para estabelecer o diálogo entre a fábula original e várias questões contemporâneas, entre elas as relações de conflito; quem somos e quem seremos; entre a solidão e o amor, entre o individual e o coletivo; entre encontrar seu objetivo ou se perder nele. A peça é uma grande metáfora para os sonhos, a amizade e as escolhas possíveis e se vale de forma brilhante dos aspectos visuais. Parabéns ao próprio André Neves que indicou um caminho possível através das suas belíssimas ilustrações do livro.

É de estremecer o coração o figurino costurado de idéias, emoções, texturas mil, sugestões, sobreposições, costurados de indícios do texto e objetos que vão além da simples utilização como elemento cênico ou de figurino. Isso sem falar da grandiosidade da música, dos instrumentos utilizados, das toadas, cantos e sons presentes a todo o momento. Tudo é milimetricamente pensado e isso ajuda a construir e até mesmo desconstruir cada personagem com uma sintonia afiada, além de congregar todos os nossos sentidos porque por trás disso tudo tem atores maravilhosos.


A riqueza dos detalhes está presente em toda parte. Poderíamos sugerir que são materiais reciclados, precários, simples, mas não é nada disso. É a pura arte. Não valeria de nada um falso pórtico de madeira no lugar dos excelentes garrafões d’água vazios (e cheios de luz) que se pensarmos bem, cria de forma estática uma relação direta entre a sua natureza e um dos elementos principais que permeiam a peça, ou seja, a água. É nessa construção múltipla de sentidos que cada um pode realmente adentrar o universo do sonho, da magia.

Um simples giz na mão do ator dá vida a novas possibilidades de construção que são esmiuçadas com inteligência e criatividade. Isso é fantástico, como também uma teia complexa de deslocamentos geográficos e marítmicos que são resolvidos habilmente! E de repente vemos a capacidade de atuar apenas com a gesticulação da boca e de uma mão, dando vida a um peixe e uma tartaruga cativantes. Isso sem falar na simples manipulação que traz à tona o Capitão. Isso é técnica, mas também é um excelente trabalho e estudo de corpo e atuação de Camille Carvalho, César Ferrario, Renata Kaiser e Marco França. Excelente trabalho de um grupo inteiro que vai da costureira Fátima Brilhante ao diretor Fernando Yamamoto.

E olhando o mundo - literalmente disposto a nossa frente num grande mapa cheio de pequenas e grandes referências metafóricas (lá estão monstros, aborígenes, aventureiros; vulcões, o próprio Shakeaspeare - que homenagem linda! - um farol que indica os vários caminhos que se apresentarão para cada um da platéia e vários lugares excepcionalmente descritos na fala dos personagens) que nos encontramos por dentro. Bussolas de nós mesmos.

Falando em luz, parabéns ao iluminador Ronaldo Costa que a transforma em um material essencial a peça, e não só a luz, como a escuridão. É nesse jogo de contrastes em palavras, sons, música, gestos, olhares, detalhes cênicos e de figurino e em uma relação direta com o público que o grupo vai mais uma vez definindo uma linguagem e linhagem única aplaudida em todo o território, eternizando sua presença na história do teatro potiguar e nacional.

É no ato de abrir os olhos nos olhos do outro, ‘frente a frente’ aos atores, que vemos o que é ir além da técnica, do brilho, da alegria, do choro. É perceber a verdade de cada um sendo emprestada aos personagens. Fiquei imaginando milhares de coisas ao vê-los em cena. Como foi esse conflito? Como resolveram essas questões como grupo? Como chegar nesse resultado estético? E a resposta não é outra senão dedicação, dedicação, dedicação e muito trabalho. Aí, lembrei que por volta de setembro de 2009, quando o poeta Carlos Gurgel fez a primeira edição do 3 Vozes Poesia, (no qual tive alegria de participar com muito orgulho - no espaço anterior do Barracão do Clowns que ficava ali próximo do Shopping Midway) que eu pude ver os Clowns já se preparando para o Capitão e a Sereia. Lembro de ver a confecção do chapéu da tartaruga, de ver alguns materiais cênicos em pesquisa e vê-los estudando e encenando.

Isso me tomou de orgulho! Quanto crescimento e amadurecimento esses atores e o grupo inteiro passou e nos presenteiam agora, a todos nós potiguares, nordestinos e brasileiros com uma arte que não é fácil; com um trabalho no qual nem de longe imaginamos as dificuldades, as barreiras e os conflitos para exibir um sólido resultado patrocinado pela Petrobrás e logrando sonhos e prêmios em uma carreira bem sucedida.

Ao final da peça, cada personagem – em um ato carregado de simbolismo relata sua versão dos fatos e tira seu chapéu. Aqui, tiro eu o meu chapéu carregado de idéias, palavras e emoções e o entrego em deferência e homenagem a este grupo inteiro.



Às vezes, a realidade tenta nos convencer que a frieza do mundo é forte o suficiente para nos derrubar, mas a arte é a prova viva de que a imaginação supera a dor da realidade.

O Grupo Clowns de Shakespeare está disposto a provar que o verdadeiro encantamento está disponível a todos os que se dispuserem abrir o coração. Eles são a verdade da “Trupe tropega, mas não escorrega”, porque nesse caminho escorregar é muito fácil, difícil mesmo é conseguir aquecer o coração de tanta gente como eles fazem!

Jean Sartief

Em tempo - o grupo seguirá de Natal para percorrer a segunda etapa de se apresentar em outros estados do Nordeste norteando novos e antigos mares em que um Capitão, uma Sereia, seus marujos, amigos, seres encantados e toda uma equipe de trabalho fazem plena diferença no meio de tanta coisa forjada e consumada como arte.

Aqui segue a programação da peça em Aracaju, Maceió e Penedo

08 e 09 (espaço Rua da Cultura) em Aracaju;

11 e 12(teatro do SESI) em Maceió e dia 14 de junho (auditório do SINDPEN) em Penedo/AL.

Um comentário:

  1. Que texto lindo Jean, tão sensível como você e o próprio O Capitão e a Sereia. Vou compartilhar no meu face, tá? Beijão.

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